sábado, 3 de setembro de 2011

Habeas Corpus Vs Contravenção Disciplinar

             Começaremos recheando este Blog com um dos assuntos mais polêmicos e porque não dizer o mais polêminco no Direito Administrativo Disciplinar Militar: O cabimento de HC em caso de restrição de liberdade imposta por autoridade Militar na esfera Administrativa.
            O HC possui a natureza jurídica de remédio constitucional destinado a garantir o direito fundamental de locomoção contra ato abusivo ou ilegal, normalmente cometido por autoridade pública, quando este ameace ou lesione efetivamente o direito de locomoção do indivíduo previsto no art.5°, XV da CF/88.
Art.5°, XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

           É fato que no rol das sanções disciplinares previstas nos Regulamentos Disciplinares militares constam algumas sanções que, apesar de administrativas, são restritivas de liberdade. Como exemplo, no âmbito do Comando da Marinha, é possível, por decisão de mérito da Autoridade Militar competente a  aplicação das penas restritivas de liberdade de Prisão Rigorosa e Prisão Simples por até 10 (dez) dias. Tal possibilidade encontra amparo na Constituição da República no seu artigo 5°, LXI, que excepciona os casos de transgressões disciplinares definidas em lei da  chamada reserva de jurisdição.  
Art. 5°, LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e       fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de  transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

            A lei a que se refere o texto constitucional é o Regulamento Disciplinar para a Marinha (RDM), para o Exército (RDE) e para a Aeronáutica, (RDA), cada qual com vigência no âmbito das respectivas Forças, os quais foram recepcionados pela CR/88 por compatibilidade material com a mesma, ressalvado o RDE, editado após a CRFB/88, cuja constitucionalidade justifica-se por outro motivo que será abordado em tópicos posteriores.

              A previsão constitucional do HC encontra-se no artigo 5°, LXVIII.

            Art. 5°, LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por  ilegalidade ou abuso de poder.

Sendo o ato administrativo disciplinar militar espécie do gênero ato administrativo, a ilegalidade e o abuso de poder estarão sempre vinculados aos vícios que podem possuir um ato de autoridade.
A lei processual penal castrense no seu art. 467 enumera alguns casos de ilegalidade e abuso de poder que a título de exemplo satisfaz esta abordagem:

Art. 467. Haverá ilegalidade ou abuso de poder:
           a) quando o cerceamento da liberdade for ordenado por uem não tinha competência para tal;
           b) quando ordenado ou efetuado sem as formalidades legais;
           c) quando não houver justa causa para a coação ou constrangimento;
           d) quando a liberdade de ir e vir for cerceada fora dos casos previstos em lei;
           e) quando cessado o motivo que autorizava o cerceamento;
           f) quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;
           g) quando alguém estiver processado por fato que não constitua crime em tese;
           h) quando estiver extinta a punibilidade;
           i) quando o processo estiver evidentemente nulo.

           Segundo o Administrativista Hely Lopes Meireles, ato administrativo é a manifestação unilateral de vontade da Administração Pública, sendo que cinco são os seus requisitos: competência, finalidade, forma, motivo e objeto.[1]

            O vício do ato administrativo disciplinar militar está relacionado às máculas existentes em um ou mais destes requisitos. Salientantando-se que os supracitados Regulamentos Disciplinares, expressam, sempre, a autoridade competente e a possibilidade de delegação (quando houver), a forma e a finalidade, que não poderá afastar-se do interesse da Administrção Militar em promover a punição do Contraventor em nome da manutenção dos princípios basilares da Hierarquia e da Disciplina. A legislação castresnse expressa, por fim, os limites, dentro dos quais o Poder Discricionário do Comando poderá atuar. 

            Já o abuso de poder, com ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro é o vício do ato administrativo que ocorre quando o agente público exorbita de suas atribuições, ou pratica ato com finalidade diversa da que decorre implícita ou explicitamente da lei.[2] Desta forma, o abuso de poder está relacionado aos requisitos competência e finalidade do ato administrativo, incorrendo em abuso de poder a autoridade que exorbitar os limites previstos na lei para a sua atuação ou exarar algum ato administrativo sem ser o agente público competente para tal, bem como aquela autoridade que perseguir outros fins que não se alinham ao interesse da coletividade.

            Dessa forma, não pode a Autoridade Militar julgar fatos típicos penais militares, exorbitar os limites previstos na legislação para a atribuição de sanções, punir um subalterno por motivos pessoais ou descumprir as formalidades previstas na legislação para o devido processo admistrativo disciplinar militar, ou seja: lançamento em livro próprio de trangressões disciplinares, prazo para a defesa e contraditório, julgamento e cumprimento da sanção imposta (se for o caso). 

            Em todos os casos supracitados a autoridade militar incorre em ilegalidade ou abuso de poder, e caso o ato administrativo exarado por esta autoridade restrinja a liberdade de locomoção do militar, surge a questão interessante sobre possibilidade ou não do writ em caso de transgressões disciplinares.

De fato, existe antinomia aparente entre o art. 5°, LXI e o art. 142, § 2º da Constituição da República, duas disposições constitucionais cujo entendimento nas Forças Armadas causa sérios transtornos, principalmente para os leigos, cujas conclusões ora declinam em favor da possibilidade da aplicação do referido instituto nos casos de transgressão disciplinar, ora no sentido da impossibilidade da aplicação do dispositivo de proteção.

            Como é pacífico na doutrina constitucionalista, não pode haver antinomia entre mandamentos constitucionais.
            No caso em tela, a antinomia aparente resolve-se pela técnica da interpretação sistemática.

Art. 5°, LXVIII da CF/88 - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se        achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

          Art. 142, § 2º da CF/88 - Não caberá "habeas-corpus" em relação a punições disciplinares            militares.

           Conclui-se com a interpretação sistemática dos artigos acima que, de regra, não cabe a aplicação do remédio constitucional em se tratando de transgressão disciplinar, salvo nos casos de ilegalidade e abuso de poder que ameace ou restrinja o direito de locomoção do administrado. Todavia, é inviável a utilização do remédio constitucional quanto ao mérito do ato administrativo. Essa é a corrente majoritária capitaneada pelo STF.

            A legalidade da imposição de punição constritiva da liberdade, em procedimento administrativo castrense, pode ser discutida por meio de habeas corpus.[3]

Não há que se falar em violação ao art. 142, § 2º, da CF, se a concessão de habeas corpus, impetrado contra punição disciplinar militar, volta-se tão-somente para os pressupostos de sua legalidade, excluindo a apreciação de questões referentes ao mérito.[4]

            Nessa linha encontra-se o entendimento de ACKEL FILHO:

O óbice ao habeas corpus há de ser admitido em termos, ou seja, o que se veda é a concessão de habeas corpus nos casos de punição disciplinar regular. Se a punição é imposta por autoridade manifestamente incompetente ou, de qualquer modo, ao arrepio das normas regulamentares que vinculam a ação do superior que pune, a ação heróica será certamente cabível. [5]

            Ainda existe uma corrente liberal minoritária na doutrina, mas que vale a pena ser citada e observada pelas autoridades militares.
            Em alguns casos tem se admitido a anulação de determinados atos administrativos disciplinares militares, por afronta aos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade do mérito do ato administrativo (verdadeira interveção do Poder Judiciário no mérito administrativo).
           Como exemplo, cita-se o caso da atribuição da punição máxima prevista em lei para determinada transgressão tida como leve. Nesse caso, há flagrante desproporcionalidade entre a transgressão cometida e o meio utilizado para coibi-la. Esses doutrinadores defendem, nesses casos, a possibilidade de intervenção do judiciário no mérito do ato administrativo e a anulação do ato administrativo do julgamento disciplinar pelo HC.

             Concluindo, a Constituição trata a atividade militar de forma especial, principalmente devido às peculiaridades da atividade e a atribui, consequentemente, regulamentação específica à profissão militar.
             É perfeitamente possível a restrição da liberdade de um militar que transgrida os regulamentos disciplinares castrenses por Ato Administrativo exarado por Autoridade Militar Competente, contra o qual não caberá HC, salvo em caso de vício nos requisitos do ato administrativo, de exorbitância dos limites legais ao poder discricionário e, por fim, de desproporcionalidade entre a pena imposta e a gravidade da contraveção cometida.
            
             Espero que tenha esclarecido qualquer dúvida. Do contrário é só postar!!!

  







[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 150-151.
[2] PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2003. p. 229.
[3] RHC 85.543, STF.
[4] RE 338.840, STF.
[5]ACKEL FILHO, Diomar. Writes Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 39.
  

Nenhum comentário:

Postar um comentário